quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O frevo vivo de Carlos Fernando



O frevo vivo de Carlos Fernando


Por Amilcar Almeida Bezerra


Dentre as numerosas utopias provincianas que habitam o imaginário dos pernambucanos, uma das

mais recorrentes é a crença de que um dia o frevo dominará o Brasil, quiçá o mundo. Este projeto de

conquista global ganhou significativo impulso a partir de 1979, quando o compositor e produtor

caruaruense Carlos Fernando lançou, pelo selo CBS (atual Sony Music), o primeiro Long-play da série

Asas da América, até hoje um marco na modernização do frevo-canção. Daí por diante foram seis LPs

com faixas compostas em sua maioria pelo próprio Carlos Fernando e executadas por grandes nomes

da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença,

Geraldo Azevedo, Fagner e Elba Ramalho, entre outros. O objetivo, claro, era transformar o frevo num

produto fonográfico de alcance nacional. Até então, nenhum pernambucano havia levado o frevo tão

longe.


Mais do que um competente produtor musical capaz de, pela primeira vez na história da indústria

fonográfica brasileira, reunir medalhões de diferentes gravadoras num único LP, Carlos Fernando

foi um compositor de características bem peculiares. Embora ancorado em sonoridades nativas,

incorporou em suas criações influências do rock, do jazz, do cinema e da poesia modernista, como

bem observou o amigo e jornalista Amin Stepple.


Carlos Fernando dilatou até onde pôde o conceito de “frevo” em nome de sua mais ampla divulgação,

provocando reações controversas entre os conterrâneos. Os mais conservadores não conseguiam

reconhecer na ousadia do Asas da América as marcas da tradição musical pernambucana.

Instrumentos elétricos, como baixo e guitarra, o andamento mais rápido que, segundo Capiba,

lembrava o “rock”, e as letras que fugiam dos clichês carnavalescos projetavam no frevo

pretensões comerciais e artísticas de forma ainda não ensaiada em Pernambuco.


25 anos antes, em 1954, Jackson do Pandeiro havia gravado a incrível canção “Micróbio do frevo”,

em cujos versos o autor Genival Macedo afirma “Eu só queria que um dia o frevo chegasse a dominar

em todo o Brasil” e convida o ouvinte a vir “a Pernambuco pra ver como é feito o passo ao som de

uma orquestra pra valer”. Os breques, as síncopes e os atravessamentos – tão comuns nos cocos e

baiões cantados por Jackson do Pandeiro – irrompem no frevo criando uma linguagem rítmica tão

própria que só reforçam a pretensão dos versos.


Em fins dos anos 1960, os baianos da Tropicália começaram a gravar frevos eletrificados,

influenciados pela escola de Dodô e Osmar, os precursores do Trio Elétrico. Nessa época,

Gil compôs “Frevo rasgado” e Caetano Veloso escreveu “Atrás do Trio Elétrico”, até hoje um de seus

grandes sucessos. Ao longo dos anos 1970, Caetano Veloso e Moraes Moreira foram alguns dos

artistas de expressão nacional que incorporaram de forma regular o frevo a seus repertórios.

O frevo finalmente ganhava o Brasil.


Os pernambucanos, porém, não se mostravam tão satisfeitos. Os arranjos pouco ortodoxos,

a ausência dos metais e a estridência das cordas plugadas sobre o Trio elétrico baiano formulavam

um contraste brutal com as orquestras de metais dos carnavais de rua e salão do Recife e Olinda.

O próprio Carlos Fernando foi inúmeras vezes acusado em Pernambuco de compor frevos

“abaianados”, espécie de rótulo herético comumente atribuído pelos conservadores locais aos

que tentavam trazer inovações ao gênero. Nesse meio tempo, às eventuais picuinhas que surgiam

entre pernambucanos e baianos, Carlos Fernando reagia com bom humor:


“É moda dizer que baiano está por cima

que está por cima, meu bem, eu também acho

segurando a barra dessa rima

deve haver algum pernambucano por baixo”

(Gilberto Gil, Ninguém segura este país, 1977)


“Gilberto baiano meu amigo do peito

Em cima ou embaixo

Aquele abraço meu nego”

(Carlos Fernando, Lenha no fogo, 1979)


Além de cinéfilo inveterado, Carlos Fernando era um obsessivo voyeur da vida cotidiana.

Em seus frevos exuberantes e coloridos, criava cenários e narrativas que nos conectavam a

experiências quase cinematográficas. À perspectiva do observador acurado, que trazia personagens e

situações verossímeis para dentro das canções, acrescentava um dom de fantasiar a realidade com

paisagens e personagens oriundos do cinema ou das mitologias populares.


Quem, além de Carlos Fernando, teria imaginado transportar a personagem do filme Lily (1953),

interpretada por Leslie Carron, para as ruas do carnaval de Olinda, como vislumbramos nos versos

de “Noites Olindenses”, ou o “Pierrot le fou” de Godard? Quem seria capaz de elaborar, de maneira

tão sucinta e precisa, a crônica de um folião que acorda na cidade alta durante o carnaval, e se depara

com a lendária boneca gigante da Mulher do dia encantando um séquito de foliões?


“Os clarins tocaram, chamando atenção

Com cara de sono, vestido de Nero

Corri pra varanda, salve a multidão

Que vem e que passa cantando

Acorda pretinho, vem ver tua tia

A deusa do povo, a mulher do dia

Requebra pintada, de rouge, talco e batom

É pena que seja de papel crepom”

(Carlos Fernando, A mulher do dia, 1979)


A utopia de uma vida carnavalizada está presente em quase toda a obra de Carlos Fernando.

Mesmo quando o cenário não é o carnaval, mesmo quando o gênero não é o frevo, a fantasia está lá.

É pena que seja de papel crepom.


Em paralelo à sua trajetória como compositor de frevos, Carlos Fernando se engajou numa prolífica

parceria artística com Geraldo Azevedo, que gerou dezenas de canções em diversos gêneros, algumas

das quais figuram entre os maiores sucessos de Geraldinho, como “Canta Coração” (Canta, canta

passarinho…) e ‘Terra à Vista” (San, San, San, São Luís do Mara…). Em função dessa parceria, se

instalou no Rio de Janeiro a partir dos anos 1970, onde constituiu família e viveu a época mais

produtiva de sua carreira profissional.


Em 1983, veio o estrondoso sucesso de “Banho de Cheiro” na voz de Elba Ramalho,

uma das faixas mais tocadas nas rádios brasileiras naquele ano. Até hoje este é um

dos poucos frevos de Carlos Fernando que costumam ser executados nos bailes de

carnaval em Pernambuco. Quase todo o restante de sua extraordinária obra dedicada

ao frevo, contudo, passa ao largo do repertório de nossas orquestras de rua e de salão.


É possível que as profundas transformações que acometeram a indústria fonográfica

nas últimas décadas tenham abalado de forma significativa a trajetória profissional de

Carlos Fernando. Como ele não era intérprete nem instrumentista, sempre atuou nos

bastidores dos palcos e da produção de discos. Ao longo de mais de trinta anos como

produtor realizou, entre outros projetos, sete volumes da série Asas da América e mais

cinco da coletânea Recife Frevoé, além do projeto 100 anos de Frevo, todos com a

participação de artistas consagrados da chamada MPB.


Contudo, à medida que os custos de produção caíam em função das inovações

tecnológicas, ficava mais difícil sobreviver profissionalmente apenas como

produtor de discos. Por outro lado, com a disseminação do compartilhamento

gratuito de música pela internet, a arrecadação de direitos autorais para

compositores também sofre um golpe brutal. Talvez por isso não tenha, com

suas asas, voado tão alto quanto gostaria. Depois de sua obra, todavia, o frevo

jamais seria o mesmo.


Fonte: http://www.cafecolombo.com.br/ideias/o-frevo-vivo-de-carlos-fernando


08/02/18

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Capiba: 60 anos do graficamente desastrado, mas antológico LP Sedução do Norte



Capiba: 60 anos do graficamente desastrado, mas antológico LP Sedução do Norte

Publicado por José Teles às 20:54


Os 20 anos da morte de Lourenço da Fonseca Barbosa, Capiba não passaram em branco apenas pelas autoridades culturais competentes do estado de Pernambuco. Passaram quase em branco pela imprensa. Insistindo em lembrar Capiba, encarco na tela da memória, e trago lá do fundo do baú, um disco que está inteirando 60 anos em 2018: Sedução do Norte, que foi relançado duas vezes com capas e título diferentes (a gravadora é a RGE), Sedução do Norte, Sedução do Norte – músicas de Capiba, e Sedução do Norte – Guerra Peixe e Orquestra RGE.
Um disco que comprova o descaso que se tinha (e ainda se tem), pela arte que não criada no Sudeste. As três capas só comungam entre si a visão estereotipada que sem tem do Brasil fora do Rio ou São Paulo. A primeira estampa uma moça de joelhos, com um violão cobrindo-lhe o maiô (ou biquíni), para aparentar que estivesse sem roupas. Está cercada por plantas tropicais. O título mais confunde, apenas Sedução do Norte (Norte e Nordeste são tudo a mesma coisa para o “sulista”).
Capiba contou em sua autobiografia (O livro das ocorrências, Fundarpe, 1988. Por que a CEPE não o relança?) que assim que soube, por Guerra Peixe, do disco, não gostou do título, e sugeriu, entre outros, Recife, cidade lendária. Não adiantou. Chegou a ir a São Paulo conversar com José Scatena, o chefão da RGE, para mudar também a capa.
Só mudaram numa segunda edição, colocando uma foto de uma praia deserta e idílica, que poderia estar em qualquer litoral do Nordeste (até do país). E ainda esqueceram completamente o grupo Os Titulares do Ritmo, um dos mais populares do país na época, que interpreta as canções. Mas pelo menos a segunda edição tem na contracapa um longo texto do maestro Guerra Peixe.
Pior foi a terceira edição, saída em 1978. Certamente ninguém na RGE tinha ideia de quem fosse Capiba, e nem sequer deram-se ao trabalho de escutara o conteúdo do disco. A capa traz chapéu de couro de cangaceiro, cartucheira, cinturão de balas, punhal, e peixeira. Pior. Esqueceram-se dos nomes do autor das músicas e novamente de Os Titulares do ritmo. Talvez a capa seja uma homenagem a Lampião e seus cangaceiros, no aniversário dos 50 anos da batalha de Angicos, onde o banco foi dizimado.
DISCO
Apesar dos percalços é o disco que melhor apresenta a diversidade de Capiba na música popular. Traz quatro dos seus poucos conhecidos maracatus-canção (Vira a moenda, É de tororó – com Ascenço Ferreira – Eh Luanda, e Nação Nagô), a trilogia Recife, cidade lendária, Olinda, cidade eterna, e Igarassu, cidade do passado. E mais, Por que você não me quer? A uma dama transitória (com Ariano Suassuna), Valsa verde, e o único frevo de rua de Capiba gravado, Um Pernambuco no Rio (composto para o clube Vassourinhas, quando este fez a célebre, e desastrada, viagem ao Rio, em 1951).
Um descaso Sedução do Norte continuar há 40 anos fora de catálogo, até porque quem está à frente do projeto é um dos grandes autores eruditos do país, que também incursionava pelo popular com toda destreza, e faz aqui uma curiosa homenagem a um ex-aluno seu. Capiba estudou com César Guerra-Peixe, no início dos anos 50, quando o maestro morou no Recife, trabalhando para a Rádio Jornal do Commercio. Foi demitido por ser comunista, mas aí é outra história.
Confiram Um Pernambuco no Rio, único frevo de rua de Capiba gravado.


Fonte: http://jc.ne10.uol.com.br/blogs/toques/2018/01/06/capiba-60-anos-do-graficamente-desastrado-mas-obrigatorio-lp-seducao-do-norte/

03 fev 2018